Letticia Francisco fala sobre a inclusão de pcd no mercado de trabalho

Equívocos na divulgação de vagas, no processo seletivo e na inclusão do profissional após a contratação de Pessoas com Deficiência (PcD) são barreiras que ainda precisam ser superadas pelas organizações. Para o RH, a capacitação nessa área significa um passo de sensibilização.

Nessa edição do Metadados Convida, conversamos com Letticia Francisco, fundadora e CEO da Semearhis. A startup de Caxias do Sul utiliza uma plataforma para facilitar o recrutamento e seleção de Pessoas com Deficiência. A conexão entre a organização e o profissional com base nas habilidades e competências desejadas, com o processo de recrutamento às cegas — ou seja, sem que a empresa saiba qual é a deficiência do candidato. 

Nessa entrevista, Letticia explica como fazer a comunicação de vagas de emprego, pontua aspectos relevantes para o processo seletivo, comenta o uso de termos corretos nas referências a PcD e destaca o alto nível de qualificação dessa comunidade. Confira os principais trechos.  

Como o RH deve fazer a descrição de uma vaga de emprego no processo seletivo quando quer contratar um PcD?

Para a pessoa com deficiência, é a mesma descrição de uma pessoa sem deficiência. Não existe diferença, porque eu estou buscando um talento, estou buscando um profissional que quer vir para dentro da minha empresa e que quer entregar resultado. Fica uma grande reflexão para você que é do RH: por que a gente tem que fazer vagas exclusivas para Pessoas com Deficiência? No nosso entendimento, a vaga é para todos. Ou seja, eu não posso tirar a oportunidade de uma pessoa que se formou em psicologia, que estudou sobre isso e quer trabalhar no setor de RH, só porque a única vaga, por ela ser PcD, é no almoxarifado. Eu não estou conectando a pessoa com o propósito dela, promovendo dignidade. O RH tem que colocar na descrição da vaga é tudo que tem: os benefícios, as oportunidades, o que você precisa desse talento, mas que a vaga é para todos.

A gente pensa que o processo seletivo precisa ser diferenciado. Na verdade, ele precisa ser diferente do que a gente faz hoje. É isso?

A comunicação externa precisa ser adaptada para todas as pessoas. Tenho que lembrar que tem disléxico, o daltônico, Pessoas com Deficiência física, a questão da deficiência auditiva, da deficiência visual. Agora, o processo seletivo é a questão do treinamento empático e de você entender que todas as pessoas têm a sua necessidade, têm a sua limitação. Temos que respeitar isso e, gradativamente, fazer essa conexão. Por exemplo, uma pessoa surda. Se você tiver, libras dentro da empresa, não é muito mais legal esse surdo fazer a entrevista diretamente com a pessoa que sabe libras? Ou então, se não tiver quem saiba libras, não é muito mais legal ele ter o suporte de um intérprete de libras para participar de todo o processo? Essa é a língua dele. Quando ele entende que existe essa conexão, a coisa é diferente, é encantadora.

Assista ao vídeo da entrevista com a Letticia Francisco. Uma das histórias que ela conta é de uma empresa que treinou equipes para trabalhar com pessoas surdas e qual foi o impacto disso na organização. Confira.

Metadados: Quais são os termos que se deve ter mais cuidado e usar corretamente ao lidar com a comunidade PcD?

Essa pergunta faz com que a gente se conecte com o mercado externo. Eu vou dar exemplos aqui. Não existe mais a fala PNE (portador de necessidade especial). Não existe mais a fala de dizer que “ele é uma pessoa especial”. Eu não posso dizer que a palavra especial está conectada com uma deficiência. Pelo contrário. O especial está muito mais conectado ao sentimento daquela pessoa em relação à tua vida. Tem muitas pessoas que dizem, mas eu fico me sentindo muito mal quando eu chamo de pessoa com deficiência. Não precisa de nada disso. A pessoa com deficiência sabe que tem uma deficiência.

Também a escrita tem que ser cuidada: P maiúsculo, o C minúsculo, o D maiúsculo. Se eu botar tudo maiúsculo, pode acontecer que a própria PcD, se ela tem conhecimento sobre isso, se a família tem conhecimento sobre isso, vai dizer assim: usa o termo PcD, porém escreve errado... Quer dizer o quê? Provavelmente não tem tanta conexão, não estuda muito, não sabe muito do meu mundo. Então, faz com que as pessoas acabem se afastando.

Para a comunidade das Pessoas com Deficiência, os pequenos detalhes fazem a grande diferença. O que a gente mais quer é que as organizações aprendam a se comunicar com essa comunidade para trazer os talentos de forma assertiva para dentro da organização. Usar os termos corretos é respeitar aquela comunidade, é respeitar aquele núcleo social que, às vezes, não se sente parte.

Assim como, por exemplo, eu tenho um funcionário aqui surdo-mudo. Não é surdo-mudo, a pessoa é surda. Muda é quando ela não tem nenhum som emitido. Agora, a pessoa que faz um som, automaticamente, ela só ela só não aprendeu a como oralizar. Então, a pessoa não pode ser surda-muda. Ela é surda. Essas são nomenclaturas corretas.

Ah, mas como é que eu falo para a “pessoa normal”, quem não é PcD? Dentro da Semearhis, falamos que a pessoa é PsD - pessoa sem deficiência. Já que a pessoa com deficiência é PcD, vamos usar a nomenclatura, a mesma sigla, reversa. Porque a pessoa sem deficiência é de uma forma tranquila, leve, que aí a gente faz com que a pessoa com deficiência se sinta inserida e, ao mesmo tempo, libera o mundo delas para que a gente também faça parte.

Então, termos como surdo podem ser usados? É cego ou é pessoa com deficiência visual?

Isso é outra coisa que a gente comenta: sempre a palavra pessoa tem que vir antes de qualquer característica. Tanto que é por esse motivo que o P é maiúsculo; o C é minúsculo, porque daí ele evidencia que existe uma barreira que eu tenho que entender qual é e tenho que minimizar; e o D é maiúsculo para dizer que tem “uma coisa que você precisa saber”.

Quando a gente fala da pessoa cega, é a pessoa que 100% não enxerga. Quando eu falo pessoa com deficiência visual, pode ser cega ou pode ter baixa visão. Eu posso dizer a pessoa que tem uma deficiência auditiva, eu posso dizer que é a pessoa surda, mas que ela também tem baixa audição.

Então, depende do contexto, depende da abordagem e depende de como você vai se direcionar àquela pessoa. Mas o mais incrível de tudo, antes de qualquer coisa, de dar essa titulação, essa pessoa foi intitulada quando ela nasceu e ela foi batizada por um nome.

Então, mais bonito é, ao invés de você dizer é uma pessoa cega, você vai dizer aquele ali é o João, ele trabalha conosco, etc, etc.

Muitas vagas oferecidas para Pessoas com Deficiência são vagas não compatíveis com o nível de qualificação que elas têm. Qual é o nível de capacitação e qualificação do banco de dados que vocês têm hoje nas Semearhis?

O nosso grande desafio enquanto Semearhis é que nós temos praticamente 70% do nosso banco de talentos com pessoas que têm graduação, têm pós-graduação... Tem gente que tem mestrado e tem doutorado. Como têm uma certa dificuldade de entrar no mercado de trabalho, essas pessoas ficam com tempo ocioso. Automaticamente, elas acabam estudando e se qualificando.

O que acontece é que quando vamos para as organizações e para as empresas, também tentamos lançar os desafios: temos administrador, temos a pessoa para o jurídico, temos pessoas formadas em marketing, temos pessoas qualificadas para RH, para psicologia. As empresas não querem.

As empresas acabam, acima do conhecimento e da formação, trazendo como se a pessoa com deficiência não tivesse a capacidade. Ou seja, eu acabo me cegando e rotulando. O que os RH mais querem é saber qual é o tipo de deficiência que eu posso colocar em determinado setor. É óbvio que tem algumas características que a gente tem que cuidar pela exposição da própria vida. Mas tem coisas que eles (PcD) fazem que as empresas não imaginam.

A comunidade PcD tem muitos talentos. O que eles estão precisando é das oportunidades. As empresas têm de permitir que eles mostrem que eles têm condições. Nós temos muitas pessoas na comunidade PcD que são talentos, que podem trabalhar até home office, que eles têm como entregar resultado. Só que, claro, a empresa tem que estar disposta a isso. E o que as empresas normalmente querem é colocar o PcD onde? Nada contra o setor de produção, nada contra o setor de almoxarifado, nada contra o setor de logística, nada contra o setor de limpeza. Pelo contrário, esses setores são fundamentais para que as empresas alavancarem seus negócios, para que a gente tenha um espaço limpo, para que a gente tenha um ambiente agradável, para que a gente consiga ter os nossos materiais no lugar certo do jeito certo. Só que não é só nesses lugares que a comunidade PcD está preparada para trabalhar. Eles estão preparados para trabalhar em outros setores e essa é a nossa grande bandeira da Semearhis.

É uma mudança cultural social, mais do que só na organização. É a sociedade como um todo. É uma luta. Tem vezes que tu encontras pessoas incríveis no setor de RH. Só que bate de frente com a chefia, não quer. Bate de frente com o líder que está no chão de fábrica, também não quer. Então, eu entendo que às vezes para o próprio setor de RH é um grande desafio. O que a gente deixa aqui reforçado é que eles não estão sozinhos. Você que pensa diferente, você que é do setor de RH, você não está sozinho, é só nos chamar que a gente ajuda.

Para encerrar, a pessoa com deficiência foi contratada na minha empresa e está bem adaptada. Mas a jornada não acaba aí. Todo mundo quer ou quase todo mundo quer ter uma oportunidade a mais na empresa. Quais são os desafios nessa área para PcD?

Essa é uma das coisas que a gente tem que cuidar muito, muito, muito. Tem muitas Pessoas com Deficiência que querem sair das empresas onde estão por não se sentirem pertencentes. Elas querem fazer um plano de crescimento. Estão há oito, nove anos dentro da organização e a organização não olha para eles. O que acontece com isso? Eles trocam de empresa. Porque justamente eles olham para o lado, veem os colegas passando, tendo a oportunidade e eles ainda permanecendo ali no mesmo setor, fazendo a mesma coisa, tendo o aumento somente do dissídio. Às vezes, não é feita nenhuma avaliação.

Se é feita uma avaliação, aconselhamos a fazer um plano de crescimento, mostrar para ele como é para as outras pessoas, dizer o que ele tem que buscar, a faculdade ele tem que fazer, quais são as conexões que ele tem de fazer, quais eventos ele tem de participar. Permitir e dar a oportunidade para que ele se entregue aquilo com paixão. Se ele se entregar com paixão, ele vai continuar dentro da empresa. Se ele não se sentir, no mês que vem, por R$ 100 a mais, ele vai para uma outra empresa.

É por isso que existem essas coisas que o currículo da pessoa com deficiência, infelizmente, é um currículo que ele fica um mês aqui, três meses lá, mais um mês aqui, mais um ano lá. E, às vezes, a empresa precisa de alguém com experiência e não vai encontrar. Por quê? Porque ele (PcD) não se sente parte do processo.

Diferente das pessoas sem deficiência, a pessoa com deficiência, quando é demitida, é por resultado e não por comportamento. Às vezes, o resultado não acontece porque as ferramentas necessárias para que ele seja inserido não foram entregues. E, às vezes, as coisas não são claras da maneira como ele entende. Mas, para a comunidade PcD, os pequenos detalhes fazem a grande diferença. E ao não saber como se conectar com aquela deficiência, só focado na lei de cotas, você está numa por um processo de aceleração tão grande que tem que bater, que às vezes não para para olhar o ser humano que tem por trás. Essa é a grande questão: somos seres humanos.