Ilustração simbolizando o RH protegendo colaboradores de assédio no trabalho

O cuidado com assédio no trabalho ganhou novos contornos nos últimos anos. A preocupação em manter o ambiente seguro para os colaboradores tem se expandido. Mas ainda há muito o que fazer. Para falar sobre o assunto, a Metadados conversou com a advogada Luciana Biazon

Luciana é pós-graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho e possui MBA em Gestão Empresarial. Atua na área há mais de 17 anos e realiza treinamentos e palestras em empresas de diferentes portes.

Nessa entrevista, ela comenta qual é o cenário atual, quais os impactos do assédio para empresa, colaboradores e governos, e também aborda o papel do RH na prevenção desses casos.

A preocupação com assédio ganhou relevância mesmo nos últimos tempos. É algo que está presente na rotina das organizações? Como as empresas também podem adotar medidas para reduzir esse tipo de situação?

Luciana Biazon: Bom, o que eu tenho notado é que essa questão não era uma enxergada pelas pequenas e médias empresas. Somente as grandes tinham esse olhar. Hoje, não. Isso tem sido difundido em termos sociais realmente – e que bom que assim está sendo. Eu entendo que é a melhor forma seja tratar o assédio de frente, como algo real que é. Não adianta dizer que são situações de "mi, mi, mi", que "não é bem assim" e "que isso não é importante". Eu tenho dados que dizem respeito ao impacto que todas essas questões de assédio causam.

Na última década, as denúncias mais feitas no TST (Tribunal Superior do Trabalho) são de questões relativas a assédio. Oito em cada 10 empresas já foram denunciadas por assédio, então são questões realmente importantes. Tratar essas questões exige um trabalho duro e transparente para que entendamos onde estão os nossos problemas como empresa.

O primeiro passo é ter um ambiente acolhedor. Uma pessoa que é vítima de assédio precisa de alguma forma se sentir acolhida. Se não, não vai adiantar você ter um canal de denúncias, por exemplo. Vejo que muitas vezes as empresas fazem o trabalho de trás para frente. Como a lei 14.457 obriga o canal de denúncias, empresas instituem o canal de denúncia. Mas e as lideranças estão preparadas? Como agir em situações de assédio? Os colaboradores sabem o que é assédio e o que não é assédio? As pessoas que vão receber essas denúncias sabem como lidar com essas denúncias.

Então, primeiro passo: tenhamos um ambiente acolhedor, tenhamos um ambiente com pessoas treinadas e capacitadas a entender o que é assédio e o que não é. Aonde nasce o assédio? Onde ele pode chegar? Como lidar com essas situações? Isso é treinamento em pessoas, lideranças e colaboradores.

Um segundo passo, que eu entendo muito importante, é a empresa ter uma política clara. Tem empresas que chamam de regulamento interno, regimento interno, código de conduta. Já tem algumas empresas que tem até compliance. Enfim, tenham algo escrito dizendo que a empresa não tolera certas atitudes e que a empresa pune agressores.

Por último, e não menos importante, tenha sim canal de denúncias. Algumas empresas veem isso como uma coisa ruim. “Ai meu Deus, eu vou ter denúncia, isso vai gerar uma causa trabalhista”. Não, o que a gente percebe na prática é  que as situações, quando são denunciadas, funcionam como o inverso: previnem uma ação trabalhista, porque você trata durante a falha, você não vai enxergar esse momento depois que a pessoa saiu e chegou o processo para você. Então, o canal de denúncias é uma importante ferramenta, desde que sejam feitas as abordagens anteriores. Se não acabam vindo até mesmo denúncias que não fazem sentido, o que causa o descrédito do canal.

O procedimento de recebimento de denúncias precisa ser claro: quem vai receber a denúncia? De que forma ela vai apurar essa denúncia? Muitas denúncias não são procedentes, então como tratar as denúncias improcedentes? Como tratar as denúncias procedentes? Como responder? Em especial esse canal de denúncia, tem que garantir anonimato. Normalmente as denúncias vem pelo anonimato. Portanto, como responder uma denúncia anônima?

Então tudo isso precisa ser pensado dentro de um regulamento interno robusto que traduza a realidade da sua empresa. Esse regulamento tem que ser feito com apoio do pessoal de Recursos Humanos, lideranças, ouvir os trabalhadores. Ver onde o calo aperta, fazer um regulamento robusto, treinamento de pessoas e canal de denúncia. Aí a gente está falando de realmente sistemas de prevenção de assédio nas empresas.

No fundo, ninguém quer admitir que a própria empresa está passível de ter casos de assédio, mas a partir do momento que se admite isso é que é possível fazer alguma ação para contornar isso, doutora? 

Luciana: Exato. O que a gente nota em grandes indústrias é que a maior parte dos assédios é cometida pela liderança direta. Quando a gente fala de pequenas e médias, quem são os assediadores? Normalmente, são os proprietários, os diretores, pessoas que têm um grande poder de decisão dentro da empresa. Tratar de um tema sensível é difícil, porque exige um olhar para si mesmo e assumir falhas, assumir a necessidade de melhoria em relação a si mesmo. Então essa é uma grande dificuldade, mas eu garanto as empresas que se debruçam nesse tópico, que lutam para melhorar o seu ambiente, para fazer como deve ser feito colhem frutos excelentes. Elas não se arrependem.

Tem um impacto do assédio na produtividade, então.

Luciana: A gente costuma dividir a questão do impacto em três grupos. Existe um impacto ao trabalhador, que pode desenvolver síndrome do pânico, depressão, doenças físicas, dores emocionais que refletem no físico. Isso vai refletir no absenteísmo, na sinistralidade, em uma situação que a pessoa vai se sentir realmente vulnerável. Ela não vai produzir o melhor que ela pode. Então, quando a gente fala de impacto no trabalhador, veja bem, qual é o ser humano que consegue dar o máximo de si se ele se sente assediado.

Nós, seres humanos, precisamos de um meio ambiente que garanta uma segurança e que a gente se sinta à vontade para trabalhar. Quando a gente perde essa segurança, não consegue dar o melhor de si. E aí a gente entra num fenômeno que se chama quiet quitting (do inglês, “demissão silenciosa”), que é aquela questão que tem muito se falado, mundial, que é como se fosse um processo de demissão voluntária. A minha alma já não está na empresa, eu já estou fora, o meu corpo está lá, eu bato cartão, eu chego cedo, mas eu já não penso mais em melhoria. Eu já não quero mais fazer o melhor, eu faço só o necessário e isso reflete na empresa.

Aí eu entro na questão dos impactos para a empresa: eu tenho uma diminuição de produtividade, uma diminuição de eficiência, aumento de erros e acidentes, aumento de absenteísmo. Eu tenho problemas tributários, quando isso começa a refletir no meu INSS, no FAP (Fator Acidentário de Prevenção). Eu tenho problemas jurídicos, porque isso começa a gerar demandas trabalhistas. Eu tenho problemas financeiros quando eu tenho que pagar essas indenizações. Então, os impactos para as empresas são visíveis, são inegáveis.

E nós temos o impacto social, o impacto relativo ao próprio governo, ao Estado, que é o custeio de benefícios previdenciários. Me assusta que hoje, no Brasil, a terceira causa de afastamento previdenciário é relacionada à cabeça. Questões psíquicas, psicossomáticas. Não estou dizendo que todas as pessoas que se afastam por essas questões são vítimas de assédio. Mas precisamos olhar para a cabeça das pessoas, para os sentimentos e para isso também.

As empresas fizeram um trabalho brilhante desde a época da década de 1970/80 em termos de prevenção de acidentes e lesões ocupacionais, e a gente tem visto uma melhoria. A gente percebe que não houve esse mesmo trabalho na mesma intensidade relacionada a comportamento das pessoas, lideranças, treinamentos e, por isso, o impacto ao Estado é enorme. Por isso, o Estado força, por exemplo, as empresas a se adequarem, tratar questões de assédio, tratar questões internas para que isso não reflita no estado realmente.

Tanto que houve uma mudança na abrangência da CIPA, que passou a incluir as questões de assédio. 

Luciana: Perfeitamente. É a lei 14.457, que traduz isso. A CIPA era para a saúde e segurança do trabalho. Agora, é a CIPA+A, que é também cuidar de assédios. E por quê? Porque isso está tendo um impacto previdenciário nas empresas, e não só previdenciário. Mas, imagina, o burnout hoje é reconhecido como doença ocupacional. Se você tem um trabalhador que está sendo assediado moralmente no tipo de assédio que é excesso de metas, excesso de cobranças, isso desenvolve um burnout. Ele vai se afastar pelo (tipo de afastamento) B91. É uma situação que se equipara a um acidente do trabalho. Ele vai ter estabilidade, como um funcionário que perdeu um braço, por exemplo. Não na mesma proporção, mas o tratamento previdenciário é B91. Temos que olhar para isso. É importante as empresas entenderem. Muitas vezes, o empresário mede o que é palpável: ah, mas eu vou investir em políticas antiassédio, treinamento, canal de denúncia, mas qual é o retorno? Muitas vezes, quando investe em uma máquina, quando investe em uma contratação produtiva, isso é muito mais palpável. Isso tudo que eu estou falando são questões invisíveis, mas que afetam diretamente o negócio que você está ali tentando fomentar, produzir e tornar próspero.

Interessante que a senhora colocou a questão do excesso de produtividade. Muitas vezes a gente faz uma interligação de assédio com algo muito escrachado. Mas eu queria entender um pouquinho mais de situações sutis que podem ser enquadradas como assédio. 

Luciana: Quando a gente fala de excesso de trabalho, metas, as pessoas confundem muito. Até onde vai o poder diretivo? Tanto que quando a empresa institui o canal de denúncia e não faz o treinamento, o que acontece? As denúncias que vêm são denúncias que não são assédio. Por exemplo, a empresa tem o direito de exigir produtividade, eficiência. Dentro dessa regra do jogo, qualquer pessoa que é contratada tem o dever, está na CLT (Consolidação das Leis do Trabalho), de colaboração, cooperação. Ela tem o dever de dar o melhor de si para fazer o melhor trabalho possível no menor tempo possível. E o empregador tem o direito de fiscalizar, tem o direito de ter câmeras, tem o direito de cobrar o trabalhador... Isso tudo está dentro do direito diretivo do poder diretivo.

Aliás, o que não pode é o excesso: metas impossíveis de serem cumpridas que gerem um transtorno psicológico na pessoa, que ela não tenha aquela segurança que eu falei que é primordial, uma cobrança exagerada, desrespeitosa. É uma cobrança que seja ofensiva, então é importante treinar as lideranças para que elas saibam como cobrar, até onde ele pode ir, como falar, onde é poder diretivo, aonde ultrapassa o poder diretivo.

Então, agora respondendo mais diretamente a sua pergunta, a grande questão que vai ensejar o assédio é quando você excede ao poder diretivo e condutas sutis. O assédio não é algo é exagerado, como as pessoas imaginam. O dano moral é. Então, as pessoas confundem muito assédio moral com dano moral. O assédio moral não precisa ter um dano moral. O assédio moral é conduta repetitiva. É aquela situação vexatória diária, é aquela cobrança inescrupulosa diária, é aquele apelido vexatório que é falado diariamente, é aquela fofoca maldosa que denigre a imagem da pessoa, é aquela exclusão do trabalhador com condutas diárias, é falar alto. Mas não é um dia que o líder não estava bem e passou do limite — não estou dizendo que tá certo, tá?! — Mas isso é uma situação que não é assédio moral. Assédio moral é repetição, é dia a dia, é cultura. Então a questão é: não é algo tão grave, mas é algo enraizado e cultural. O dano moral, não. O dano moral é a uma situação que, por si só, acontece, por exemplo, uma vez e já é suficiente para gerar uma indenização. Só que no caso do dano moral, eu tenho que provar que houve dano a vítima, prejuízo moral a vítima. No caso do assédio, não prova o dano. Eu provo repetição de conduta. Essa é a diferença.

O que que pode acontecer com uma empresa onde há assédio?

Luciana: Existem duas questões que a gente precisa dividir. Existe a punição que a empresa pode sofrer em ter um ambiente assediador. Essas são as mais variadas: processos trabalhistas, multas e outras punições.

Por coincidência, eu estava num seminário da Scania de sustentabilidade e lá foi falado, por exemplo, sobre o trabalho que algumas empresas já fazem a respeito de verificar se os seus parceiros comerciais tiveram denúncias de assédio. Então veja para que caminho a gente está indo. Clientes que já analisam os seus parceiros comerciais são parceiros assediadores, e isso é um critério comercial.

Então o prejuízo para a empresa é indenização trabalhista, é um prejuízo em relação à marca, é ser uma empresa reconhecida por ser assediadora, entre outras questões.

Já para trabalhador assediador, se eu tenho um termo de conduta, se eu tenho um código de ética e eu trato isso como uma falta, uma vez identificado que houve o assédio, eu tenho respaldo jurídico para poder punir o assediador e a punição pode ser, a depender do nível da conduta, uma advertência, uma suspenção ou, dependendo da situação, já pode ser diretamente uma (demissão por) justa causa. Imagina uma situação, por exemplo, de um assédio sexual que é um crime, o teu trabalhador vai responder pelo crime que ele cometeu na esfera criminal. E por ter cometido um crime e por ter cometido uma falta tão grave, ele pode ser dispensado por justa causa. Então, as consequências são ruins. É gravosa tanto para a empresa que permite o assédio como para o próprio trabalhador que comete o assédio.

Para encerrar, a senhora pontuou a questão de envolver o RH nesse combate ao assédio. Qual que é o papel do RH?

Luciana: Na prática, o RH é o grande guardião da questão de assédio no Brasil, porque, como eu comecei dizendo, as empresas não têm portes iguais. A maioria das nossas empresas são pequenas ou médias. A empresa não tem um advogado especializado nessas questões. A empresa normalmente não tem uma liderança tão bem qualificada nessas questões. O RH vai ser o bombeiro da situação. São as pessoas do RH que normalmente recebem as demandas. Eu vejo muitas empresas que eu vou e que chega assim: olha o trabalhador fez isso, ele faltou 3 vezes. O que que eu posso fazer? Posso dar uma advertência? Eu posso cobrar? Ele está indo toda hora no banheiro, como eu posso falar? Como tratar? O RH recebe esse tipo de demanda corriqueiramente e o RH que precisa estar preparado para poder responder e dar respaldo para a diretoria.

O papel do RH também é cuidar dessa documentação, para que esse canal de denúncias seja feito, que as denúncias sejam recebidas e sejam respondidas, de buscar a elaboração desse código de conduta junto à empresa, fazendo todo esse meio de campo entre os anseios dos trabalhadores e da empresa, e colocar tudo isso no papel de uma forma que possa fazer acontecer. O trabalho do RH é primordial em toda a questão do direito do trabalho em qualquer empresa. O direito trabalho se traduz através do RH. Eu falo com muito orgulho que eu sou advogada trabalhista, mas eu me apaixonei pelo Direito do Trabalho, porque eu sou uma profissional de RH. Trabalhei muitos anos em RH e foi aí que eu desenvolvi esse amor pelo Direito do Trabalho, e eu digo que tem profissionais de RH que têm um conhecimento que supera conhecimento na parte do direito do trabalho de muitos advogados que eu conheço. Então, o RH precisa se preparar, estar sempre apto a ouvir e a entender toda essa questão da empresa.